Antonio Obá: elogio à Pintura
Diante de uma revoada de pássaros pretos, um homem negro engole um ovo cru. Solitário sob o céu amarelado, ele carrega um galo com uma mão. Nessa imensidão transcendente e inquieta, um homem repete um gesto ancestral.
Exposta na Pina contemporânea, tal pintura de Antonio Obá compõe a mostra individual do artista, intitulada “Revoada”. Em um áudio, o próprio pintor rememora as associações que lhes foram caras ao realizar a obra: o alvorecer do cerrado, seu ambiente natal. Os assuns pretos, pássaros cujos olhos são cegados para que o animal cante melhor. O ritual popular de tomar o ovo cru, capaz de potencializar a voz daquele que o pratica.
Voz (música), visão (pintura) e transcendência: com esses elementos, Antonio Obá articula uma equação simbólica complexa. Trata-se de um duplo sacrifício de aves. A do ovo para que o homem cante bem e a do olho do assum, para que o pássaro cante ao homem.
Música também intitula o quadro - “música incidental: black bird” – Com essa metalinguagem, a obra de Obá associa-se ao canto, tanto dos pássaros quanto do homem retratado: ambos pretos, ambos potencializados por um sacrifício. Mas não ouvimos a obra de Obá, nós a enxergamos. Trata-se de pintura, ou seja, de um exercício que se dá à visão – justamente o sentido que o assum perde para poder cantar melhor.
Se o pássaro preto perde a visão para cantar melhor, o que perde o homem preto para fazer ver melhor? Obá não fecha a equação e nem explicita o resultado de sua inversão. De todo modo, cabe especular: se ao perder o olho, ganha-se canto, talvez o sacrifício da voz potencialize criação de imagens. Justamente a perda da voz, que é algo que se lança ao outro na expectativa de reconhecimento: que se projeta espacialmente a reverberar entre as pessoas.



Os outros trabalhos do artista corroboram essa hipótese do sacrifício das palavras, em função da imagem. Salta aos olhos a gravidade e a solidão das personagens pintadas por Obá: ou elas estão sozinhas ou não parecem interagir entre elas. Elas não têm com quem se comunicar e encerram-se como símbolos, cuja expressão silenciosa inviabiliza qualquer palavra de sair de suas bocas.
Gravidade e solidão são elementos bastante raros na tradição artística brasileira e mesmo os pintores que tomaram os santos populares como inspiração, dissolveram o caráter hierático em atmosferas doces e alegres. As madonas de Alfredo Volpi, por exemplo, pertencem ao mundo festivo dos estandartes: não flutuam na luz ofuscante da eternidade, mas no universo das bandeirinhas e dos mastros. Também não é grave o caráter dos santos de Fulvio Pennacchi, mas nostálgico: rememora uma experiência cultural alegre, assentada numa cidade ou em uma vila que não existem mais. Mesmo Portinari, ao pintar o drama humano, faz dele uma experiência coletiva, se não familiar.
Até entre os artistas contemporâneos, a solidão não é uma gramática comum entre os brasileiros. Maxwell Alexandre é uma espécie de etnógrafo a descrever práticas sociais. Rosana Paulino chega a conferir um caráter inverso ao que Louise Bourgeois dá aos símbolos: enquanto a franco-americana escrutina a própria história em uma espécie de psicanálise, a brasileira aproxima-se de uma sociologia do trauma coletivo, cujos símbolos não são individuais, mas compartilhados.
A mística que organiza os trabalhos de Obá parece advir, na verdade, de um imaginário muito mais protestante e estrangeiro do que católico ou brasileiro: origem reiterada pela remissão ao universo de Martin Luther King, dos cantos de trabalho e das tragédias de Boston que o próprio artista identifica, em áudio, nas suas obras expostas.
É difícil imaginar uma filiação, na tradição artística brasileira, para as obras que Obá expõe na Pinacoteca. Talvez os santos populares e barrocos, talvez alguma coisa do chão marrom de Portinari. O universo da pintura internacional é, por sua vez, constantemente evocado: os corvos de Van Gogh, a luz coagulada nos tecidos de El Greco, alguma coisa da composição rigorosa de David Hockney.
Além disso, as telas de Obá encarnam uma aposta bastante radical na tradição da pintura e nas suas potencialidades, o que também soa disruptivo entre os artistas contemporâneos do nosso país. Talvez o melhor equivalente seja Maxwell Alexandre, mas enquanto este afasta-se dos suportes tradicionais em favor do papel pardo, Antonio Obá prefere o óleo sobre tela: técnica e suporte umbilicalmente vinculados à tradição.
Com efeito, a lenda brasileira do racha entre moderno e contemporâneo insiste na decepção com a pintura e com o plano pictórico: de onde adviria as obras conceituais, interativas e tridimensionais de Hélio Oiticica e Lygia Clark. Uma cisão muito menos radical entre os protestantes dos Estados Unidos, onde a arte contemporânea filia-se às conquistas de Jackson Pollock, Andy Warhol e Robert Rauschenberg.
É na tradição de pintura, no entanto, que Obá encontra os meios para tornar transcendentes os sacrifícios do povo negro. É com ela, que ele modela o corpo das crianças, erguendo-as aos céus em acrobacias angelicais. Uma pintura que ele pratica sem nenhuma ironia. Com ela, o artista aponta para a tradição artística do ocidente, como aponta para o universo da luta antirracista e afirma: veja, esse é o mundo construído pelos que vieram antes. Foi construído com muitas perdas: sacrifícios que transcendem a própria dor em exercício de beleza e imortalidade. Na restrição do espaço onde a voz ressoa, fazemos pintura. Com a pintura, celebremos!
Antonio Obá: Revoada
Local: Pina Contemporânea, Galeria na Praça
Data: 26 jun 2023 — 18 fev 2024
Endereço: Avenida Tiradentes, 273, Luz, São Paulo — SP.
Horário de funcionamento: de quarta a segunda, das 10h às 18
Mais informações: Pinacoteca