Localizada na galeria Gomide&Co, a exposição O Curso do Sol merecia estar em museu. Trata-se de uma iniciativa rara entre as mostras brasileiras, seja pela pesquisa, que vai além de nossas fronteiras, seja por tematizar a circulação internacional. No caso, a da cultura visual japonesa, por rotas que atravessam os oceanos, conectando a Ásia a diferentes países latino-americanos.
A temática da circulação internacional é recente na História da Arte e na curadoria: perspectiva que recusa o encerramento das obras em realidades geográficas precisas e as enquadra em rotas percorridas por objetos, pessoas e ideias. Nessa interpretação, ilumina-se os aspectos de negociações culturais, tensões e os consequentes descolamentos de sentido dos objetos.
Tal perspectiva tem dado bons frutos no Smithsonian Institution, com destaque para a mostra “Sargent, Whistler, and Venetian Glass: American Artistists and the Magic of Murano”, cujas obras brotaram do trânsito entre Estados Unidos e Veneza, no meio do caminho entre a Europa e a América do Norte: desde vidros convertidos em moedas preciosas, até pinturas e gravuras de artistas que visitavam os canais. Também couberam ali os registros dos restauros da catedral de São Marcos, resposta ao turismo crescente na região, bem como as rendas de Burano, cuja indústria foi desenvolvida sob inspiração do artesanato de vidro.
No que diz respeito à presença de artistas japoneses na América Latina, a mostra que Yudi Rafael curou na Galeria Gomide&Co, afina-se com um interesse do mercado norte-americano pela produção da diáspora asiática, insuflado pela emergência da China no cenário internacional e a consequente presença de chineses abastados.
Com argumento muito parecido com o de Rafael, a curadora do Art Museum of Americas, Adriana Ospina organizou entre 2020 e 2021, a exposição “No Ocean Between us: Art of Asian Diasporas in Latin America & the Caribbean, 1945-Present”. Na abertura do catálogo, Ospina deixa clara a centralidade do Brasil para o tema - fascinada, ela narra a experiência de caminhar pela casa do nipo-brasileiro Manabu Mabe, em São Paulo. Segundo seu próprio relato, a visita teria lhe aberto os olhos para a dimensão do encantamento do crítico cubano, José Gómez-Sicre, pelo pintor. Ou seja, para o fascínio do fundador do Art Museum of Americas em Washington-DC pelo artista, cujas obras foram colecionadas como prata da casa.
Rafael incluiu uma bela pintura abstrata e lírica de Mabe nas paredes da Galeria Gomide&Co. Esse pintor, falecido em 1997, também recebeu destaque na SP-Arte desse ano. Ele está cada vez mais ausente, no entanto, dos museus brasileiros, que tem priorizado linguagens figurativas e que insistem em encarar a abstração geométrica como as mais representativas da realidade nacional. Enquanto nossos museus não abarcam esse tipo de arte ou de exposição; o mercado tenta ocupar esse espaço.
Cabe, assim, celebrar a pesquisa e a iniciativa , que inclui obras fascinantes e difíceis de serem vistas ou mesmo conhecidas: as telas de Kazuya Sakai, de 1956, a de Waichi Tsutaka de 1959 e de Tsuguharu Foujita de 1918 são apenas alguns exemplos.
Eu faço votos, no entanto, que “O curso do sol” seja um ensaio e que logo tenhamos uma mostra, em museu, a explorar esses temas: com mais fôlego, espaço e investimento didático.
Alocada em uma galeria, a mostra perde muito do que o paradigma da circulação traz como ganho: não há nem espaço e nem o tipo de investimento necessário para que as obras sejam dispostas a fim de iluminar a complexidade que seu significado ganha ao serem criadas, mobilizadas e transportadas por sujeitos que se deslocam.
Em um museu haveria mais espaços e recursos para que não se diluíssem os significados contextuais dos trabalhos de alguns artistas. A exemplo do que aconteceu com os realizados por Léon Ferrari na década de 1990, Adriana Varejão em 2011 e Utagawa Yoshitora em 1862. Enquanto todos esses artistas recorrem ao erotismo derivado da gravura japonesa, perdeu-se, por exemplo, a ironia do trabalho de Varejão – justamente um comentário do caráter imperialista desse imaginário sensual, cujo fundo é uma rota colonial, estendida pelos portugueses entre o Japão e o Brasil.
Da mesma maneira, vemos uma tela de Alberto da Veiga Guignard que ressoa à moda japonista que encantou os impressionistas europeus no fim do século XIX. Não temos, no entanto, recursos para entender qual a relação do pintor com os japoneses. A que alude a semelhança entre a paisagem de Guignard e as gravuras asiáticas? Mera coincidência? Mobilização de uma forma orientalista que foi entronizada na Europa por Van Gogh e companhia? Ou será que ele teve contato com alguma gravura específica?
Respostas a algumas dessas questões podem ser encontradas no longo texto de apresentação preparado pelo curador. Ele informa, por exemplo, que as gravuras da família Utagawa foram colecionadas por Massao Okinaka (artista que também participa da mostra) como “parte de uma iconografia do mundo flutuante que se tornou matéria prima para a produção de artistas latino-americanos de diferentes gerações, como Léon Ferrari, Adriana Vaerejão e Yudi Yamagata.”
Galerias não são obrigadas a lidar com a educação do grande público e nem com o fomento da pesquisa em arte: duas funções dos museus. Para esses espaços privados, as questões levantadas por Yudi Rafael trazem uma complexidade inesperada, juntamente com obras importantes e pouco conhecidas. “O Curso do Sol” demonstra a riqueza que essa assunto teria, se os museus brasileiros o explorassem.
Para aqueles que forem visitar a exposição: vale ir com mais tempo e conferir duas mostras que estão próximas: “Ivan Serpa Documental (1923-2023) ”, no Instituto de Arte Contemporânea e a individual de Tania Cardiani na Galeria Vermelho, intitulada “Cerimônia”.
O Curso do Sol
19 de agosto a 14 de novembro de 2023.
Horários de visitação: Seg. – sex: 10h – 19h; Sab.: 11h – 17h
Entrada gratuita
Mais informações: http://gomide.co/exhibitions/27-o-curso-do-sol/overview/