A CADA 14 DE SETEMBRO, a casa do pintor Manabu Mabe se abria em festa para comemorar seu aniversário. Em 2024, ele completaria 100 anos. Durante sua vida, os convidados chegavam às centenas, entre políticos, diplomatas e empresários de diversos países. Figuras dignas dos livros de história, como David Rockefeller e Robert McNamara, visitaram sua residência.
Nas mesas, havia comida japonesa, provavelmente sushis. Nas paredes, estavam expostas suas pinturas de dimensões épicas, que testemunham os objetivos característicos dos artistas abstratos que emergiram no pós-guerra, como Jackson Pollock, Franz Kline e o próprio Mabe. Esses artistas queriam criar obras grandiosas, nas quais o desafi o da execução estivesse expresso no controle do gesto, na perícia com a mancha colorida e no domínio do tamanho da tela.
Os salões, com seus enormes pórticos de vidro, abriam-se para os jardins japoneses que o próprio artista planejou. Os convidados podiam admirar os montes artificiais, os lagos, as carpas e a chuva primaveril respingando nas folhas e nas pedras. Tanto a festa quanto a casa que a comportava eram o cenário de uma biografi a singular: a de alguém que nasceu no Japão e chegou ao Brasil aos 10 anos de idade. Um imigrante que veio colher café no interior de São Paulo e que se lançou ao desafio de se “inventar como pintor” e se tornar “o mais brasileiro dos japoneses no Brasil”.
Se o cafezal não continha suas aspirações, Mabe ansiava pela chuva: a mesma que abençoava seu aniversário, impossibilitava o trabalho na lavoura e o libertava para a prática artística. Nos momentos livres, tomava lições com os artistas japoneses mais experientes de Lins e se aventurava, cada vez com mais frequência, na capital paulista, onde integrou a segunda geração do SEIBI-KAI: o grupo de artistas japoneses onde os mais jovens aprendiam sob orientação dos veteranos, como Tomoo Handa eYoshiya Takaoka.
Naquela época, as galerias e feiras de arte ainda não se firmaram no Brasil, de modo que o sucesso de um artista era estabelecido pelos prêmios que ele recebia nos salões oficiais. Em 1955, Mabe recebeu suas primeiras láureas de peso. Dois anos depois, ele vendeu o cafezal e foi residir na casa do Jabaquara, onde sua família habita até hoje. Ele próprio projetava sua residência, que crescia ao longo dos anos à medida que ele se destacava no cenário internacional.
A carreira de Mabe foi meteórica: explodiu em 1959, quando foi escolhido o melhor pintor brasileiro na V Bienal de São Paulo. Foi então que celebrou, pela primeira vez, seu aniversário em grande estilo, nos salões de sua casa. Na sequência, vieram os reconhecimentos nas Bienais de Paris, Veneza e Córdoba. Na década de 1960, os jornais o celebravam como um Pelé das artes plásticas, um recordista de prêmios internacionais, e o Itamaraticoncedeu-lhe um passaporte diplomático para que representasse o País no exterior.
A residência, que crescia com a importância do artista, completava-se com os jardins que começaram a ser plantados nesse momento. Esse era um sonho que Mabe trouxe da sua casa de infância no Japão: o de reproduzir no Brasil o paisagismo que cercava o lar de sua família em Kumamoto.
Nesse espaço que ele criava entre a memória e o presente, entre Japão e Brasil, Mabe habitava com sua esposa e seus três filhos, e olhava para o futuro. Os jardins, que vinculavam o artista à infância e encenavam sua origem para os convidados ilustres, também serviam como recurso didático: neles e no entorno de sua casa, Mabe “brincava de pintar” com sua família. Brincava de representar paisagens, instruindo seus filhos no ofício das tintas e dos pincéis, repetindo um exercício que aprendeu com os mestres do SEIBI-KAI e que praticou com zelo antes de se converter à abstração.
A reverência a esses mestres e ao ensinamento que recebeu marcava presença em sua casa, informando que o sucesso que alcançara não era individual, mas fruto do esforço de, pelo menos, duas gerações de artistas nipo-brasileiros. No andar abaixo dos grandes salões, localizava-se o ateliê do artista. Nas paredes desse espaço, havia uma galeria de retratos, onde apareciam o próprio Mabe, sua esposa e os mestres do SEIBI-KAI. No centro do cômodo, estava o cavalete robusto, capaz de suportar telas grandes e pesadas. A luz que iluminava esse cavalete vinha de uma enorme janela, por onde se viam os jardins japoneses. Ao pintar, Mabe tinha diante dos olhos as façanhas dos que o precederam e a luz da própria origem. Sua arte emergia entre as gerações de artistas japoneses que imigraram para o Brasil, traçando o vínculo de suas histórias na cultura de nosso País.